Cuba

Cuba hoje: a ilha além dos estereótipos

27 maio 2015

Quando as águas azuis do Caribe finalmente encontraram as praias de Cuba, a agitação tomou conta do nosso avião. E não era só a curiosidade natural de chegar a um destino novo.

Quem vai à ilha agora parece ter um  sentimento de urgência, de que algo está pra mudar em um dos lugares mais polêmicos do mundo. E que é preciso ver tudo, antes que Fidel Castro morra ou o socialismo acabe.

Pois assim que o avião pousou no aeroporto José Martí e comecei a descobrir Havana, a impressão foi de que a mudança já está ocorrendo. E iniciou-se muito antes de Raul Casto e Barack Obama apertarem as mãos.

A primeira consequência prática da aproximação diplomática entre Estados Unidos e Cuba foi a invasão de turistas. Em 2016, o país recebeu 4 milhões de turistas, 13% a mais que  no ano anterior e um recorde histórico.

Turismo para sair da crise

Rua do centro histórico de Havana

Rua do centro histórico de Havana

 

Não é de hoje que Cuba aposta no turismo para fortalecer a empobrecida economia. Com o fim da União Soviética, Cuba perdeu seu principal parceiro comercial e os Estados Unidos deram o golpe de misericórdia. Ampliaram o bloqueio comercial, impondo sansões também a empresas estrangeiras que comercializassem com a ilha.

Durante a década de 90, faltou quase tudo em Cuba. De combustível a energia e  comida na mesa. Os prédios desmoronavam. O país precisava de investimento externo e o turismo era uma das prioridades. Mas como atrair visitantes para uma cidade, e um país, caindo aos pedaços?

 

Praia de Varadero

Praia de Varadero

Suas belas praias deram o primeiro impulso. Empresas estrangeiras toparam virar sócias do estado cubano e transformaram Varadero e algumas pequenas ilhas do arquipélago de Cuba em paraíso turístico.

Mas a capital também estava nos planos. Em Havana, a antiga Oficina do Historiador, responsável pelo patrimônio histórico, ganhou autonomia inédita para recuperar o centro histórico em sistema de autofinanciamento.

Hotel Santa Isabel

Hotel Santa Isabel

 

Hotés nasceram ou renascerem nos antigos prédios recuperados. Residências e lojas foram restaurados. Hoje, o Habanaguax, braço administrativo da Oficina, é responsável por mais de 20 hotéis, além de bares e restaurantes.

O dinheiro é aplicado em obras , que atraem mais turistas , que deixam mais recursos, que financiam outras obras…O investimento inicial, de 2 milhões de dólares, se multiplicou por 15 na década seguinte.

Capitólio e Grand Teatro de Habana ( ao fundo).

Capitólio e Grand Teatro de Habana ( ao fundo).

Hoje, no centro de Havana, a gente esbarra o tempo todo em canteiros de obras. Os andaimes cercam a imensa cúpula do Capitólio, sede do governo até 1959. A entrada do Gran Teatro de Havana, sede do premiado Ballet Nacional de Cuba está bloqueada por tapumes.

Obras também no Museu da Revolução, em ruas , praças e no Malecón, o calçadão a beira-mar. Em Habana Vieja, o centro antigo da cidade, operários trocam tubulações subterrâneas de mais de cem anos.

 

Calle Obispo, a principal rua do centro histórico.

Calle Obispo, a principal rua do centro histórico.

Mas é só caminhar um pouco para encontrar a cara rejuvenescida da velha  Havana. O calçadão movimentado respira vitalidade, cercado por fachadas de quatro séculos recuperadas nos menores detalhes.

Viajantes que passaram por aqui há poucos anos me descreveram um cenário apocalíptico. Até dá pra imaginar, vendo a decadência das ruas que ainda não foram restauradas aqui mesmo em Havana Vieja e no bairro próximo, o Centro Havana.

Boa parte da cidade ainda precisa de restauração. Mas hoje em dia um turista tradicional passa o dia tranquilamente entre bons restaurantes, museus bem cuidados e muita música caribenha nas esquinas.

 

Plaza Vieja

Plaza Vieja

A vida real entre dois mundos

A multidão de turistas não para de aumentar. Mas isso não quer dizer que a vida anda fácil por aqui.

A moeda usada pelos turistas, o CUC, circula lado a lado com o peso cubano, a moeda dos salários estatais. 1 CUC vale 1 dólar, exatamente 24 pesos cubanos. Na prática, a diferença monetária reflete uma realidade estranha, como se dois mundos diferentes se cruzassem o tempo todo nas ruas.

Não que haja abundância em Cuba. Não existem shoppings, nem lojas de departamento, nem fast food. Mesmo para os turistas, há poucas opções. Eu mesma tive dificuldades para encontrar uma simples escova de dentes.

Armazém em Havana

Ainda assim, a simplicidade das pequenas vendas e mercearias cubanas impressiona. Não parece faltar comida mas as opções são poucas, basicamente alimentos e produtos essenciais. Cheguei a ver filas para comprar ovos na principal rua turística de Havana Vieja.

O susto é maior ainda quando a gente sabe que o salário médio de um cubano é de 400 pesos, mais ou menos R$50,00 por mês, o que o turista gasta em 1 ou 2 refeições em CUC em Havana. Como é que eles vivem?

Perguntei isso na cara dura a alguns cubanos. Todos têm médico e escola de graça, a passagem de ônibus custa 1 peso cubano e 80% da população tem casa própria, mesmo que malconservada.

Ainda assim, o dinheiro que resta só dá para o básico do básico.

Classe média em Cuba?

Estudantes em Havana

Estudantes em Havana

A população de Cuba tem perfil de classe média: mais de 10 anos de escolaridade, casa própria, média de 2 filhos por mulher.

Além disso, a taxa de mortalidade materna e infantil é baixíssima, a expectativa de vida passa dos 77 anos, acima da brasileira. Não há favelas e a sensação de segurança é alta. O que falta é capacidade de consumir.

Mas quando você conhece melhor o pais, começa a perceber que nem tudo é tão óbvio. Numa economia da escassez, sem luxo nem variedade, o que é que explica:

– As lojas de produtos importados vendendo para cubanos?
– As lanchonetes, galerias de arte, disk-pizza e bairros  bem cuidadas que vi fora das áreas turísticas de Havana?
– Os cubanos de celular na mão, viajando nos ônibus turísticos?

Cuba - O que ver

Parte da resposta está com os  cuentapropistas, as pessoas que trabalham por conta própria em Cuba.

Estão por todo lado. É o morador que me hospedou na casa dele, o dono dos pequenos restaurantes, os “paladares”, o motorista do TAXI que herdou o Chevrolet anos 50 do pai. E também relojoeiros, sapateiros, manicures e comerciantes que atendem em portinhas abertas pra rua.

Todos pagam imposto, podem alugar salas e contratar funcionários. O governo cubano passou a permitir os pequenos negócios privados durante a grande crise. Quando assumiu, em 2008, Raul Castro ampliou as categorias autorizadas a trabalhar por conta própria.

Hoje, quase quinhentas mil pessoas, 10% do total de trabalhadores, são donas do próprio nariz. Muitos deles  ganham em CUC. E estão reinvestindo para melhorar o negócio.

 

Confeitaria em Havana

Confeitaria em Havana

 

As residências de Havana Vieja já oferecem o mesmo número de leitos que os hotéis estatais. Os paladares acanhados viraram lugares aconchegantes, decorados com bom gosto e simpatia.

Mais da metade dos cubanos já trabalha hoje no setor privado. Sem falar na turma que engorda o salário estatal com serviços particulares e gorjetas.

No ano passado, o pessoal da área de saúde recebeu aumento. Um médico especializado por ganhar até três vezes mais que o salário médio. Ainda assim, o cardiologista que me hospedou pretende trabalhar no Brasil, juntar dinheiro e voltar para Cuba. Mais ou menos como os nossos decasséguis alguns anos atrás…

E o turista com isso?

Alguns preferem ver o copo meio cheio, outros o enxergam  meio vazio…. Mas viajar por Cuba agora é ver tudo acontecendo ao mesmo tempo.

Está mais fácil e mais barato conhecer e também sair da capital.  Dá pra hospedar-se em hotéis internacionais ou em residências cubanas, contratar uma excursão ou chegar aos principais destinos da ilha em ônibus confortável, taxi ou carro alugado.

A ilha, que até pouco tempo parecia se resumir a Havana e Varadero, começa a crescer aos olhos dos turistas.

Trinidad

Trinidad

Caverna do Vale dos Viñales.

Caverna do Vale dos Viñales.

 

Entram nos roteiros destinos menos conhecidos, como a interessante região de Vinãles, a oeste de Havana, e a histórica Trinidad, Patrimônio Nacional da Humanidade

O mais bacana é conhecer Cuba com a ajuda dos cubanos. E é muito fácil puxar conversa. Em poucos minutos, eles são capazes de dizer o quanto ganham, reclamar dos impostos, falar de política ou da economia do país.

Todos com quem conversei esperam o fim do embargo comercial, muitos querem que as mudanças sejam mais rápidas, mas a maioria não quer perder o que conquistou.

Como o país vai desatar este nó? Cada um tem um palpite, mas fica difícil até imaginar o que vai acontecer.  É por isso que, mesmo depois que o avião decola, continuamos todos com os olhos grudados na bela ilha dos cubanos.

 

FOTOS: Cassiana Pizaia
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Veja mais sobre Cuba:

O que fazer em Havana: Um roteiro pelo centro antigoDe Sierra Maestra ao Museu da Revolução
Cuba: O Valle de Viñales
Varadero: Como ir, reservar hospedagem e circular sem pacote
Trinidad: A cidade histórica mais charmosa de Cuba
Um dia de paraíso nas praias de Cayo Largo, em Cuba

por Cassiana Pizaia
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comentários

  1. Susan
    28 maio 2015

    Demais, Cassiana! Dá muita vontade de conhecer.

    • Cassiana Pizaia
      31 maio 2015

      Obrigada pelo retorno, Susan. Eu já estou com vontade de voltar! 🙂

  2. Jandira
    28 maio 2015

    Magistral seu texto, como eu queria saber tudo o que está acontecendo em Cuba. Obrigada pela excelente narrativa. Pretendo viajar até lá em breve.

    • Cassiana Pizaia
      31 maio 2015

      Obrigada, Jandira. Espero que este e os próximos posts possam te ajudar a planejar sua viagem!

  3. Adriana
    29 maio 2015

    Adorei!!! Texto direto que nos leva a caminhar pelas ruas de Havana com vc…. Nos mostra as dificuldades e as belezas da ilha… Parabéns!!!!!

    • Cassiana Pizaia
      31 maio 2015

      Valeu, Adriana!

  4. mara sallai
    29 maio 2015

    Delícia!!

    meu próximo destino

    • Cassiana Pizaia
      31 maio 2015

      Vale a pena ir, se puder, Mara. Obrigada!

  5. Vinícius Mendes
    11 ago 2015

    Estou indo pra Cuba em outubro e acho que, até agora, esse blog me ofereceu os melhores relatos sobre a viagem. Parabéns, Cassiana.

    • Cassiana Pizaia
      11 ago 2015

      Obrigada, Vinícius. Alguns outros posts sobre Cuba estão a caminho. Devem sair antes da sua viagem. Boa sorte nos preparativos!

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